AD: rebranding do centro-direita é o mais significativo evento depois da geringonça

Paulo Querido
6 min readDec 27, 2023

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Encurralado por Passos, Ventura e Pedro Nuno, Montenegro saiu-se com uma fuga para a frente — ou para trás, não se percebe bem, mas uma fuga. Que talvez salve o centro-direita e bloqueie o CH.

Não se percebe ainda: vão a fugir dela ou para ela? Crédito: Mário Pires com Midjourney 6

PSD e CDS anunciaram em conjunto na passada quinta-feira (21/12) uma coligação de longo fôlego e ambição. Chama-se (até ver) Aliança Democrática e vincula estes dois partidos do centro-direita e direita para o “horizonte do actual ciclo político, conforme conta do comunicado. Ou seja, abrange as legislativas antecipadas para 10 de março, as europeias previstas para junho e as autárquicas do ano seguinte, 2025.

Provavelmente, não se ficará por aí. Este anúncio é, salvo melhor opinião, o mais significativo evento político-partidário em Portugal desde o acordo que em 2015 permitiu que pela primeira vez na história da democracia portuguesa partidos à esquerda tivessem uma influência direta na governação. E é uma resposta ao atual ambiente político de extremismo e perda de poder dos centros, tal como esse já fora.

Contudo, tem um potencial muito diferente. Desde logo porque é um acordo pré-eleitoral e não um acordo parlamentar. Ao concorrerem juntos, PSD e CDS vão obter um ganho direto em mandatos tirando partido da metodologia definida para as eleições em Portugal — e em particular da utilização do método de Hondt (que, recordo numa pincelada breve, privilegia os partidos que somem mais votos).

Em 2021 o CDS não elegeu deputados obtendo um total de 89.113 votos. PAN e Livre tiveram menos votos no total do país, mas elegeram um deputado cada um.

[Nota: não foi por causa da forma de contagem que o CDS foi afastado: foi porque perdeu 132.000 votos de 2019 para 2021. Mais de metade da sua base eleitoral evaporou-se em dois anos. Ou pior ainda, numa perspetiva diacrónica mais alargada: de 2011 para 2021 o CDS foi reduzido a pó, valendo 13% do que valia, dado que passou de 654.000 votos para 89.113. ]

Esta utilização inteligente do método de Hondt não é uma novidade; o PCP usou-a sempre, coligando-se com o PEV e outras forças e cidadãos independentes, primeiro na APU, depois na CDU. Um exercício que VamoLáVer relatou na edição de 8 deste mês (aqui) demonstra na prática o efeito contabilístico do método de Hondt e mostra como uma coligação dos partidos do centro-esquerda e esquerda, sem o PS, uma “Coligação da Esquerda Verde” vagamente inspirada no Sumar espanhol, que reunisse PAN, Livre, PCP, PEV e BE, teria dado à esquerda parlamentar mais 5 deputados em 2019 e mais 3 em 2022. Isto sem contar com nenhum voto a mais ou a menos, apenas contando com os votos obtidos por esses partidos nas duas eleições.

Estamos, ainda, muito longe de técnicas de manipulação direta do universo eleitoral, como faz impunemente a direita americana com o gerrymandering (redesenhar os círculos eleitorais para potenciar os resultados eleitorais nos locais mais vantajosos). Aproveitar a distorção do método de Hondt não é jogo baixo, sujo ou ilegal: é inteligência pragmática.

Salvar o centro

Mas não creio que o potencial da Aliança Democrática se fique pela inteligência da soma dos votos. Desta vez a coligação não é acerca do partido maior do centro-direita salvar o partido da direita em risco. Ainda que a aliança venha favorecer extraordinariamente as figuras do CDS, resgatando-as do desprezo dos eleitores e dando-lhes uma segunda oportunidade, desta vez é acerca da sobrevivência do PSD.

E, com isso, é acerca da sobrevivência da representação política de uma direita conservadora e moderada, que tem vindo a ser ameaçada tanto pelos lados como por dentro.

E, com isso, é acerca da sobrevivência do sistema partidário português.

E, com isso, é acerca da sobrevivência da democracia em Portugal.

[ Por democracia aqui entenda-se a continuidade de alguns mecanismos essenciais da separação de poderes e da sua verificação — os “checks and balances” — mais do que um sistema eleitoral nominal transformado em legitimador de ditadores, tal como existe em países autocráticos, nas chamadas democracias iliberais. ]

Os três problemas do partido dos fantasmas

Nem com o extraordinário bambúrrio do derrube de um governo de maioria absoluta o PSD deu sinais de ânimo eleitoral. O partido pura e simplesmente não descola nas sondagens e estudos de opinião. Paira sobre o seu líder o fantasma de Pedro Passos Coelho. O PSD é, de resto, um partido povoado por fantasmas, no qual nenhuma figura da atualidade — todas elas homens, todos eles semelhantes entre si — emergiu na última década. As raras figuras novas com algum potencial de modernismo (estou a pensar em Jorge Moreira da Silva, eis alguém com conhecimento e compromisso num dos assuntos mais importantes de hoje e de amanhã) foram estupidamente postas de lado.

Passos Coelho não minou só o PSD: dinamitou todo o centro-direita, deixando a extrema-direita a reunir os cacos. Passos, de resto, sabemos todos o que quer: dar o braço direito a André Ventura. E Luís Montenegro teve a inteligência de seguir o caminho oposto, precisamente o caminho oposto.

O PSD tem três problemas:

  1. um problema de imagem, é uma marca desgastada e desacreditada
  2. um problema ideológico, e não me refiro à confusão inscrita na sua genética, a dúvida entre a social-democracia e o liberalismo que foi sempre aproveitada pelo líder ocasional, mas sim à deriva populista que o tem desviado para fora do centro nos últimos 15 anos. Este problema ideológico é muito visível na sua narrativa errante ao longo deste século, tendo começado com a deserção de Durão Barroso e sido agravado durante o passismo
  3. E um problema de direção.

Já o CDS tem um único problema: recolocar as suas pessoas-chave — até aqui mantidas no espaço público graças aos bons ofícios das diligentes televisões privadas — nos lugares de decisão, quer no Parlamento, quer no governo.

A Aliança Democrática resolve os problemas de ambos. Todos os problemas.

Em primeiro lugar, resolve a imagem. Não é um refrescamento: é uma imagem nova. A marca é antiga, mas é uma marca boa, limpa, sem o lastro inevitável da governação (a AD original governou menos de dois anos e nada fez de característico ou duradouro).

Em segundo lugar, resolve a ideologia. Os pontos do comunicado são elucidativos: a narrativa dominante consiste nas ideias do CDS. O sinal é bem claro: a AD é a vitória da tolerância sobre o populismo e o extremismo. O CDS afasta-se de Assunção Cristas e Francisco Rodrigues dos Santos, o PSD afasta-se da deriva de Passos Coelho — e sobretudo afasta-se de André Ventura.

Em terceiro lugar, as pessoas-chave. A Aliança recupera para um hipotético governo figuras como Paulo Portas. Tem um peso muito maior que qualquer das pessoas que costumam aparecer ao lado de Luís Montenegro. Outros ex-governantes de boa ou mesmo assim-assim imagem, como Adolfo Mesquita Nunes e Paulo Núncio, têm maior peso que metade do PSD conhecido da televisão e imprensa.

Isto, claro está, é muito bom na teoria.

A primeira questão é: isto é bom ou mau para o país?

A minha resposta é inequívoca e pronta: é bom para o país. Não falo pessoalmente: nenhum avanço da direita será alguma vez positivo, é a minha convicção. Mas eu não sou o país e há muitos outros interesses e formas de ver. E no conjunto, para a sociedade, é bom.

E porquê?

Porque tira algum vapor às duas forças que têm vindo a esticar o sistema partidário português e a extremar o espaço público, CH e (sobretudo com a atual liderança) IL.

Porque recentra a direita.

Porque devolve ao centro-direita algum alento e confiança.

Porque abre um caminho que, uma vez percorrido, permitirá, salvar Portugal do ditador em gestação, André Ventura, e poupar a União Europeia a mais uma ameaça.

Resta agora saber o que se vai passar na prática. Desde logo, ver como reage o eleitorado. Não tenho dúvidas que vamos ser impiedosamente massacrados com a formidável narrativa que os media vão construir em torno desta solução, desta operação de reconstrução da face do centro-direita.

Mas tenho dúvidas sobre a reação — quer ao massacre, quer ao rebranding. A recomposição é para já uma tentativa — desesperada, talvez mesmo a única saída que restava — de um determinado setor do centro-direita para manter o estatuto e o poder, perante o desafio de setores mais jovens e competitivos, desejosos de conquistarem a sua fatia do poder.

Até que ponto esse setor é ainda importante em termos eleitorais?

Até que ponto o avanço para o fim do estado de direito democrático, que é o caminho trilhado por CH e IL em velocidades e estilos diferentes, é inevitável, tornando este esforço infrutífero a prazo mesmo que vença a próxima batalha?

E será capaz de a vencer?

Tenho ainda dúvidas sobre o que sucederá com o PSD que ora saiu perdedor: o passismo ficará enterrado ou manteve intacta a capacidade de recuperar?

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